quarta-feira, 20 de agosto de 2014

A maternidade é feita de escolhas

Fazer escolhas conscientes e assumir responsabilidades para ser a mãe real, e não a ideal, são formas de tornar a maternidade mais leve e feliz.

1. Como começa o processo emocional de transformação da mulher em mãe e o que ele acarreta?
A gravidez é um processo de crise de desenvolvimento, de rito de passagem – por isso evoca conflitos dentro de nós. É uma fase em que transitamos de algo muito conhecido para algo muito desconhecido. A mulher vive um momento de desorganização emocional, até mesmo corporal, em vários níveis – inclusive do ponto de vista hormonal. É um momento de fragilidade e, ao mesmo tempo, de encontro com forças que ela nem conhecia. Na gravidez, a mulher vai sentindo e evocando sensações físicas diferentes ao longo dos três trimestres. No primeiro trimestre ela ainda não sente os movimentos do bebê – ele é imaginário –, e a visão (mesmo a de ultrassom) é abstrata, se comparada à do último trimestre. Mas, aos poucos, ela vai entrando em contato com o bebê e com suas expectativas em relação à vida como mãe. Começa a construir uma teia de referências a partir da mãe que teve, das mulheres e dos bebês da família. Hoje, é comum a mulher ter pouco ou nenhum contato com bebês antes de se tornar mãe, pois está focada na carreira e não conhece a rotina de crianças em casa. Isso contribui para que ela crie um cenário fantasioso do que pode vir e que se debruce sobre expectativas.

2. As expectativas se quebram com o nascimento da criança?
Sim, as expectativas entram em choque: a mãe ideal conhece a mãe real. Ela enfrenta o desafio de desapegar do que conhecia, das antigas rotinas, e estabelecer novos ritmos. A mãe real, que está ali 24 horas por dia com o bebê, se choca com a que ela idealizou, e ambas são assombradas por um fantasma da mãe que ela teve, pois, seja uma referência positiva ou negativa, traz o peso de um modelo a seguir ou a evitar. É difícil seguir modelos quando não estamos certas do que queremos.

3. Então saber ser mãe não surge naturalmente, mas a partir de referências. Como acontece o processo de transformação e o que ele acarreta?
A tendência é buscar as referências mais concretas, da própria família, que se mistura às vivências do momento de vida atual da mulher. A mulher começa a se questionar e a querer entender o que é viver com um bebê. Tenta se lembrar de como era ser criança: Quem é a criança que fui? Do que eu gostava? Como eu me comunicava? Como era a relação com minha mãe? Para algumas mulheres essa lembrança vem muito forte, e para outras há ainda o surgimento de medos, receios, experiências. É o processo natural de surgimento da figura materna.

4. Como lidar com essa bagagem emocional tão intensa e, ao mesmo tempo, cuidar de um recém-nascido?
É necessário que a mulher se sinta acolhida. Assim como a criança tem necessidades específicas e precisa de espaço para que uma habilidade se desenvolva, a mulher também precisa de apoio e de momentos sozinha, para perceber o que funciona ou não para sua família. A mãe recente precisa de recolhimento, de acolhimento e de ajuda para encontrar as ferramentas internas de reestruturação. Os recursos podem ser desde um trabalho terapêutico individual, para entender melhor sua relação com o mundo e as formas de se conectar com o filho, até a participação em grupos e relacionamentos que podem vir a partir de profissionais de saúde ou de outras mães.

5. Por que ser mãe é um grande desafio?
O lugar que a mãe ocupa é visto como prioritário nos cuidados com o bebê – ela tem uma posição de destaque perante os outros cuidadores, e isso a coloca sob uma responsabilidade e uma grande pressão, para as quais ela nem sempre está preparada. Além disso, há a grande mudança na rotina, com novas demandas a suprir e alterações sociais, familiares, financeiras e no estilo de vida, além de privações que a maternidade traz, por um tempo relativamente longo de dedicação aos cuidados de um filho, que implica obviamente desafios constantes e entrega.

6. Qual a chave para que esse processo fique mais fácil ou mais leve?
Desapegar da idealização gradualmente, olhar para a realidade que está se transformando e procurar fazer dela algo que a mãe reconheça como seu. É preciso lembrar que maternidade é uma construção e desconstrução constante, é um aprendizado. A vida pode ficar mais leve se a mãe se permitir chorar, achar espaço para sentir a dor, o medo e a tristeza e então perguntar a si mesma: O que está pegando? É o medo de perder? É a relação com a profissão ou com o companheiro? É a liberdade perdida? Um mergulho para dentro e a observação, com apoio para suas necessidades, pode ajudar efetivamente a encontrar saídas que façam sentido em sua realidade de vida.

7. A superação das dificuldades da maternidade vem com a experiência?
Sim, pois ela começa a questionar o que está “na cartilha”. Muitas vezes o que ouviu ou entendeu a partir das amigas ou da própria mídia não fará nenhum sentido para ela quando o bebê chegar. O pacote do que é ser mãe inclui uma grande oportunidade de aprendizado e crescimento. Encontrar formas de lidar com o bebê que a agradam e que fazem sentido com o que os dois sentem é um grande desafio que suscita os fantasmas da culpa. Há o medo de não fazer “o certo”, de prejudicar o bebê, de ser uma mãe ruim, de estragar o filho. Quando ela reconhece o que sabe e o que não sabe e começa a reavaliar e investir nas descobertas, flexibilizando, observando o que é seu e o que vem de fora, descobre o que de fato são as necessidades do seu bebê, que é único.

8. A culpa materna pode ficar mais leve?
A culpa inerente à maternidade pode ficar mais leve, sim! Para algumas mulheres a culpa aparece já na gravidez, pois sempre que surgem expectativas há chance para frustração, que é terreno fértil para a culpa. Diminuir o nível de expectativas ou torná-las mais realistas, percebendo limitações, julgando menos, aprendendo a aceitar mais e a se perdoar pelos tropeços são posturas que reduzem a culpa. O caminho envolve reconhecer responsabilidades e escolhas para mudar a realidade, em vez de resignar-se com o peso negativo da culpa. Quando somos responsáveis podemos agir, mas a culpa paralisa! Quando percebemos que temos saídas e aprendemos a flexibilizar, nos perdoando por nossas frustrações e tropeços, buscando apenas reparar, a culpa pode ser dissolvida. Ter um espaço seguro para questionamentos e acesso à informação de qualidade contribui para criar relações mais saudáveis à dupla mãe e bebê, respeitando a autorregulação de ambos.



Josie Zechinelli é mestranda em psicologia da saúde, psicoterapeuta corporal reichiana e formada em Terapias Integradas de Respiração e Renascimento. Trabalha auxiliando mulheres a reconhecerem como a conexão com seus filhos pode ser fortalecida, desde a gestação, para uma maternidade mais consciente.http://www.maternidadeconsciente.com.br


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